26 de Março de 2023


RUI GUEDES

Di­retor de Vendas das Pá­ginas Ama­relas






O vendedor do pós-guerra





Estamos na primeira metade do século, uma guerra abalou a Europa e nada voltará a ser como dantes. Dois blocos lutam relativamente perto das nossas fronteiras e não há como ficar indiferente ao que se passa. Os acontecimentos sucedem-se, as consequências, mesmo para os não diretamente envolvidos, são cada vez mais obvias e não parece haver um fim à vista. 

 O que sabemos é que todas as guerras têm um fim, sabemos também que os vencedores se encarregam de escrever a história e hoje até podemos dizer que essa guerra terminou. Durou de 1939 a 1945, deixou rastos de destruição e de injustiças mas o velho continente reergueu-se e prosperou economicamente. Claro que beneficiou do Plano Marshall mas, ainda que tivesse que cumprir determinadas linhas de orientação dos EUA, pois não há almoços grátis, deu mesmo a volta por cima.

Vendas nos EUA

Nesse período do pós-guerra já existiam vendedores verdadeiramente profissionais, há histórias que nos vão dando imagens daqueles tempos e, curiosamente, vemos ainda muitas semelhanças com aquilo que se vai passando nos dias de hoje. A este propósito talvez fosse mais prudente recorrer à IBM, mas vou optar por Arthur Miller que, não sendo uma referência em Vendas, deixou obra enquanto dramaturgo, sendo possível




Morte de um caixeiro Viajante de Arthur Miller - fotografia de Jorge Gonçalves para a pág. Espetáculo

destacar, desde logo, “A Morte de um Caixeiro Viajante” escrita em 1949.

Esta peça de teatro é uma verdadeira tragédia onde quase nada de bom acontece, mas de positivo fica um prémio Pulitzer e um conjunto de frases que são pequenos retratos de uma época que passou.

"Percebi que ser vendedor era a melhor carreira que um homem poderia ter. "

"O velho Dave tinha vendido mercadorias em 31 estados." 

"Subia ao quarto do hotel, calçava as suas pantufas de veludo verde, levantava o auscultador, ligava aos Clientes e vendia mesmo sem sair dali."

 "Esta profissão tinha personalidade."

Contudo, o que me fica mesmo na memória é a cena inicial, na qual o protagonista entra em palco carregando duas grandes malas, dando algumas pistas sobre aquilo que poderia ser o seu dia-a-dia.

Vendas em Portugal

Li num jornal regional, de uma localidade do interior do nosso país, um interessante artigo escrito por José Ferrão intitulado “Os caixeiros-viajantes”. Apesar de se tratar de um texto relativamente recente, refere-se também a uma época que andaria por meados do século passado. Os excertos que tomo agora a liberdade de partilhar são fotografias muito nítidas de uma época e de uma profissão.

"Os caixeiros eram sempre bem recebidos pelos comerciantes, que ansiosamente os aguardavam e com eles estabeleciam relações cordiais."

 "Demoravam-se na vila alguns dias, instalavam-se nas pensões locais e frequentavam os cafés, conviviam e socializavam. Enredavam o discurso com anedotas e com as últimas notícias, novidades exclusivas que circulavam pela cidade e que os jornais não expunham. A política estava fora dos assuntos."

"Hoje os negócios usam outros métodos, agilizaram-se e baniram contactos pessoais. Mas não podem apagar a imagem que eles criaram, nem o importante papel social e

cultural que exerceram nas populações do interior, tão longe dos centros de onde irradiavam as influências."

A determinada altura o autor refere-se a um vendedor em particular que lhe ficou na memória e não resiste a descrevê-lo.

"Era uma simpatia. Apresentava-se sempre com cuidada elegância e esmero. Rigoroso no trajo e nas maneiras, naturalmente sorridente, perfumado e cativante, fazia jus às exigências da profissão. Isto ajudava a cativar e favorecia as relações… preparava-se com vasta informação, atualizada e conveniente, estudava e diferenciava os Clientes. Um autêntico e bom mensageiro, que habilmente sabia ambientar-se para melhor preparar o caminho dos negócios, em que costumava ser eficiente e feliz.

Estes exemplos ficam como marcas de tempos mais calmos e mais humanizados."

A Economia

Quando estudamos a Lei da Oferta e da Procura, mesmo sem aprofundar muito o tema, ficamos a saber que as coisas acontecem… mantendo tudo o resto constante. Esta é obviamente uma abordagem excessivamente leve para um assunto tão profundo, mas o que daqui pretendo retirar é que, num mercado de concorrência perfeita, chegamos à determinação de um preço de equilíbrio partindo de um conjunto de pressupostos que a realidade se encarrega de pôr em causa. Claro que este ceteris paribus tem toda a utilidade para a análise que é feita, mas todos certamente concordamos que a racionalidade e a transparência do mercado não passam de convenientes pressupostos teóricos.

Na verdade, nem sempre a prioridade do empresário é a maximização do lucro, nem sempre a prioridade do consumidor é a maximização da utilidade e, mais importante do que isto, não há por parte de todos os participante no mercado um acesso completo a toda a informação.

A realidade

Começamos por ver que esta

profissão tinha personalidade, tinha um estatuto que permitia estar pelo hotel de pantufas de veludo verde, e acabamos por constatar o importante papel social e cultural que os vendedores exerceram nas populações. Veja-se que o vendedor preparava-se com vasta informação, atualizada e conveniente, estudava e diferenciava os Clientes. Um autêntico e bom mensageiro, que habilmente sabia ambientar-se para melhor preparar o caminho dos negócios, em que costumava ser eficiente e feliz.

Ora começa a ser muito evidente que, naqueles tempos, um dos fatores que mais impactava o sucesso em vendas passava pelo facto do Vendedor ser detentor de muita informação que, pelos mais variados motivos, estava vedada a quem necessitava de comprar. Este brutal desnível entre a informação detida pelos diferentes intervenientes, fazia pender com grande estrondo o prato da balança para o lado do vendedor, aumentando-lhe desmesuradamente a capacidade de influenciar.

Agora, estamos na primeira metade do século, uma guerra abala a Europa e nada voltará a ser como dantes. O que sabemos é que todas as guerras têm um fim e portanto esta guerra de potências em solo ucraniano também vai acabar. Vai deixar rastos de destruição e de injustiças mas o velho continente vai reerguer-se e prosperar economicamente. Claro que Portugal beneficiará do PRR, ainda que tenha que cumprir determinadas linhas de orientação da União Europeia pois não há almoços grátis, mas vai dar mesmo a volta por cima.


E neste contexto, qual é então o papel do atual profissional de vendas?

As Vendas

É um exercício relativamente simples ir buscar semelhanças a duas épocas históricas separadas por muitas dezenas de anos. Os Vendedores continuam a estabelecer relações cordiais, convivem e socializam. Prudentemente, continuam, quase sempre, a manter a política longe das conversas. Apresentam-se com cuidada elegância, têm em conta a forma de vestir, as maneiras e são naturalmente cativantes.

Criam relações, estudam de forma diferenciada os Clientes, sabem ambientar-se e preparam um caminho que lhes permite ser eficientes e felizes.

Com tantas semelhanças encontradas sem qualquer esforço, o interesse poderá então estar na identificação de uma grande diferença, e essa é, com pouca margem para qualquer erro, a Informação a que todos hoje têm acesso.

Os tempos que temos vivido têm incrementado a informação disponibilizada, e já nem estou a falar do facto de termos uma guerra a ser transmitida em direto porque isso já é história. Em boa verdade isso aconteceu pela primeira vez em 1991 na Guerra do Golfo. O que evidencio é que hoje os Clientes têm à sua disposição uma fonte praticamente inesgotável de informação relativa a qualquer tema que se possa imaginar e isto mudou completamente as regras. Quando um Consultor Comercial entra    

em campo, já o jogo pode ter Jornada do Cliente pode ter-se iniciado através de um contacto acidental com a marca, o Cliente pode ter recolhido um conjunto de dados que viu como relevantes, pode ter-se aconselhado com amigos, pode ter pedido a opinião a pessoas que já experimentaram o produto, pode ter lido várias críticas online e portanto, possui informação.

O desafio do Vendedor de hoje, está portanto em saber acrescentar valor em cima de tudo isto que já existe! Tem que começar por ter consciência que os pratos da balança onde era pesada a informação começaram a equilibrar-se e, em muitos casos, estão hoje muito desnivelados, mas agora com um forte peso do lado do Cliente.

Paradoxalmente, a importância deste profissional passa a ganhar uma importância acrescida, na medida em que terá que estar preparado para dar resposta ao que o Cliente precisa adicionalmente de saber. Tudo pode decidir-se nos detalhes e por isso mesmo, sem ser intrusivo, o vendedor deverá posicionar-se como alguém que auxilia o Cliente na tomada de decisão, alguém que está verdadeiramente interessado em perceber as suas necessidades, alguém que transforma informação em conhecimento, alguém que consegue personalizar o discurso e a proposta, alguém que não vai ser esquecido porque proporcionou uma excelente experiência de compra.

Conclusão

Da mesma forma que na apresentação de certos conceitos dá mesmo muito jeito ter ali à mão um conjunto de pressupostos teóricos, sempre que por aqui falamos do lado do Cliente e do lado do vendedor, é também numa perspetiva teórica que apenas tem como intuito clarificar o discurso. Como hoje é óbvio para todos que não está em causa um jogo em que alguém vai perder, o que se procura é um acordo em que todos os participantes possam de facto ganhar.

Aprender com a História e com as histórias pode ser um bom ponto de partida para projetar o futuro. Quando leio que os tempos eram mais calmos e porventura até mais previsíveis não tenho dificuldade em concordar, acrescentando apenas que acredito que hoje podem continuar a ser humanizados e são seguramente mais fascinantes e desafiantes.

Olhei para o que até agora escrevi e senti que aquela parte do Arthur Miller não terá sido das mais cativantes. Assim sendo, para poder terminar com algum glamour, fica a lembrança que o dramaturgo esteve casado com uma loira que, astutamente se fez passar em muitos momentos por menos inteligente, ganhou um Globo de Ouro para melhor atriz, imortalizou-se apesar da sua breve viagem cá pelo planeta e respondia pelo nome de Marilyn Monroe.




A morte do caixeiro viajante do século passado é uma evidência irrefutável. 


Quanto ao Consultor Comercial da terceira década do século XXI, recorrendo a Mark Twain, diria que as notícias sobre a sua morte foram manifestamente exageradas, e diria mais: 


- Está bem e recomenda-se!







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