19 de Janeiro de 2022





VÍTOR BRIGA

Formador de Criatividade e Comunicação





PORTUGAL – SABER APROVEITAR O ACASO











“Quem exclui o acaso da sua vida priva-se do melhor que ela tem para dar.”


Gregory Berns




A

inda devido à pandemia, eu e a minha companheira decidimos, em 2021, fazer a nossa viagem de férias por Portugal. Optámos por um destino tranquilo: um turismo rural numa aldeia de casas de xisto cercadas por maravilhosos olivais na zona das Beiras. Um lugar onde o objetivo não é tanto o da descoberta, mas sim o da contemplação. A aldeia onde ficámos tinha cerca de duas dezenas de habitantes. Um lugar esquecido no tempo, com casas de xisto e granito, algumas em ruínas poéticas, recantos encantadores onde podíamos reparar no brilho prateado das oliveiras ao sol e ser embalados pelo som persistente do ribeiro que ali passava.

Nesta aldeia começava uma caminhada de cerca de nove quilómetros que, por entre montes, olivais e ribeiros, iria até à aldeia seguinte. Certa manhã, apesar do calor, decidimos iniciar o trilho, supostamente bem identificado pelos sinais comuns para caminhantes. Como habitualmente nestas caminhadas, começamos com o bom humor dado pelo fresco da manhã e o ímpeto de quem vai ter a terapia única que nos oferece a imersão na natureza.

Pouco tempo depois de começarmos, deparamos com uma encruzilhada e um



sinal mal colocado (ou mal interpretado por nós) que nos levou por um caminho que se mostrava cada vez mais estreito e perigoso, com troncos caídos e declives acentuados, enfim, um autêntico “caminho de cabras”. Como a temperatura nesta altura rondava já os trinta e cinco graus, uma vez que se aproximava o fim da manhã, o bom senso indicava que não era boa ideia continuar e por isso recuamos e voltamos para perto da aldeia.

No caminho de regresso, bastante frustrados por não termos conseguido o objetivo, decidimos parar numa pequena quinta junto a um ribeiro onde centenas de cabras pastavam. A dona da quinta, uma simpática e determinada jovem agricultora, acompanhada pela sua pequena (mas muito autoconfiante) filha, percebeu que andávamos perdidos. Decidimos perguntar-lhe o que tínhamos feito de errado, pois achávamos o caminho muito perigoso. Recebemos uma gargalhada típica de alguém para quem aquele caminho era a coisa mais



simples do mundo. Um autêntico choque cómico dos hábitos da aldeia com os hábitos da cidade.

As nossas novas amigas decidiram vir connosco fazer o caminho e levar-nos por recantos que calcorreavam com toda a naturalidade. Aquilo que antes era para nós uma floresta de medos, tornou-se um parque de diversões, bastou sermos guiados pela pessoa certa. Pelo caminho, ainda houve muito riso pela falta de perícia dos citadinos nestas coisas. A verdade é que acabamos na casa desta local a beber uma refrescante cerveja, daquelas que nunca mais se esquecem por terem sido oferecidas no momento certo. Saímos com sacos de histórias, tomates, pepinos, peixes do rio e queijo de cabra oferecidos pela nossa amiga, na sua simpatia genuína de quem quer partilhar as coisas que produz, e deslumbrados com este acaso. Na verdade, a melhor coisa que nos aconteceu nessa manhã foi termo-nos perdido!

O termo inglês Serendipity, serendipidade em português, é usado




para definir o ato de “encontrar algo magnífico enquanto se procura outra coisa” ou “a capacidade para fazer descobrime­ntos desejáveis por acidente”. É a arte de aproveitar, e otimizar, o acaso. A definição mais divertida é a do investigador holandês Pek Van Andel que diz que serendipidade é «tentar encontrar uma agulha num palheiro e sair de lá na companhia de uma bela camponesa».

A história demonstra que a serendipidade é uma fonte inesgotável de criativi­dade. Vejamos alguns exemplos:

1 - O primeiro registo escrito sobre o chá aparece num livro de 2737 a.C. sobre farmácia e ervas, escrito pelo carismático imperador e cientista chinês Shen Nung. De acordo com a lenda chinesa, foi este líder que inventou o chá. Conta-se que o imperador teimava em só beber água fervida. Um dia, de visita a uma zona remota do império, quando os seus criados lhe ferviam água, o vento soprou algumas folhas de um arbusto para dentro da 



água que  ficou com cor e aroma. O imperador, que era muito curioso, resolveu provar a mistura e o resultado é o que sabemos. O chá, juntamente com a água, é a bebida mais popular do mundo;

2 - Alexander Fleming foi de férias e, por esquecimento, deixou algumas placas com culturas de estafilococos sobre a mesa, em vez de as guardar no frigorífico ou inutilizá-las, como seria natural. Quando voltou ao trabalho, em setembro, observou que algumas das placas estavam contaminadas com mofo, facto que é relativamente frequente. Notou, no entanto, que havia, numa das placas, um halo transparente em torno do mofo contaminante, o que parecia indicar que aquele fungo produzia uma substância bactericida. O fungo foi identificado como pertencente ao género Penicilium, donde deriva o nome de penicilina dado à substância por ele produzida;

3 - O Viagra deveria ser um medicamento para o coração. Mostrou-se 



ineficaz. No entanto, os investiga­dores estranharam que as cobaias masculinas não queriam parar de o tomar…

O acaso é uma fonte inesgotável de ideias criativas. Para o aproveitar teremos de ser humildes e estar atentos. Só aqueles que quiserem e lhe derem a oportunidade é que vão vê-lo. 


Como disse Louis Pasteur, «o acaso só favorece os espíritos preparados». 


Três comportamentos que favorecem a ocorrência de serendipidade:

Interesse – Queira entender e explorar os eventos inesperados, em vez de simplesmente os descartar como inoportunos. Evite julgamentos apressados e prematuros e considere-os oportunidades.

Conhecimento – Para poder aproveitar as oportunidades do acaso, deverá fazer estudos cuidadosos e intensivos na área que escolheu para criar, pois de outra forma não entenderá a relevância do que surgir e as suas potenciais consequências.

Permita o inesperado – Não fique refém da eficácia, vá por caminhos que ainda não explorou e deixe-se ser surpreendido. Aproveite a excitação que o acaso provoca.


«A natureza programou-nos para aproveitarmos as oportunidades inesperadas. É por isso que as surpresas e as expectativas incertas colocam o cérebro num estado de excitação que subjetivamente sentimos como um estado de prazer», diz o neurocientista alemão Stefan


Klein no seu belo livro “Como o acaso comanda as nossas vidas.” E aconselha: «Vale a pena organizar a nossa vida de modo a conceder mais espaço ao acaso. O que mais nos impede de o fazer é, frequentemente, para além do receio perante o desconhecido, a caça ao proveito mais evidente: não queremos esbanjar tempo e energia com pessoas e coisas das quais pouco esperamos. Naturalmente faz todo o sentido que não dispersemos, mas quem exagerar na sua tentativa de maximizar a eficiência desaproveita inúmeras oportunidades. Facilmente nos esquecemos de que apenas podemos calcular o valor daquilo que já conhecemos. Quem considera desinteressante uma experiência que nunca fez ou uma pessoa que pouco conhece pode ter razão...ou não».




Às vezes, pequenas portas dão para grandes salas!





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