3 de Janeiro de 2022








MÁRIO CASTRO MARQUES

Consultor e Especialista em Proteção da Inovação Empresarial





 


A caminho de uma Cultura cada vez mais digital? E qual o papel da Propriedade Intelectual?









Numa época em que os constrangimentos têm sido vastos e manifestos, também as mudanças têm sido brutais. A Cultura enquanto realidade dinâmica não está imune a estas mudanças, bem pelo contrário.




A

As criações e as manifestações culturais tradici­onais diminuíram substancialmente no meio físico, em virtude destas adversidades e dos constrangimentos legais.

Con­tudo, enquanto conjunto de manifestações e criações da atividade humana, a produção cultural não parou, vendo-se obrigada a adaptar aos limites impostos pelo distanciamento.

O ambiente digital, aliás, desde há alguns anos, tem-se afirmado enquanto patamar alternativo (não substitutivo) para muitas divulgações daquelas produções e cri­ações. Com efeito, desde há mais de 20 anos que o ambiente digital tem sido o caminho para a divulgação massiva de muitas obras culturais, nomeadamente de obras musicais, de cinematográficas, entre outras. Numa primeira fase, o aproveitamento ilícito destas era também massivo – veja-se o caso do download de música em plataformas como o Napster e o Groskter e de obras cinematográficas através do famoso Pirate Bay.

Progressivamente, a indústria cultural tem também se conseguido adaptar ao digital, se bem que, muitas vezes, com algumas dificuldades na implementação de modelos de negócio competitivos e atrativos.



Em matéria de obras musicais, a criação de várias plataformas streaming mos­tra ser a solução adotada, realçando-se a Spotify e a Tidal, entre outras, e que permitem aos utilizadores um acesso a milhares de músicas em qualquer local, com recurso a um dispositivo de receção digital, como um smartphone, mediante vários tipos de subscrição, e que poderão ser pagos ou não, mas neste caso, com publicidade à mistura.

Também nas obras cinematográficas, seja na sua produção, seja divulgação e exibição, vários projetos digitais têm-se mostrado pioneiros numa massificação digital deste tipo de obras junto do público em geral. A Netflix e a Amazon Prime assu­mem-se como as em­presas promotoras mais rele­vantes neste negócio digital cultural, sendo cada vez mais produtoras de obras cinema­tográficas, exclusivamente di­vul­gadas no ambiente digi­tal, mas que denotam já uma grande qualidade na sua produção e realização. De tal forma que, muitas das séries produzidas por estas em­presas têm tido uma enorme popularidade e interesse, tendo dado azo à realização de muitas temporadas e absorvido a atenção de muitos espectadores, nomea­damente a série “La Casa de Papel”. A nível mundial, só no penúltimo trimestre de 2020, a Netflix contava com 195,15 milhões de assinantes (1) .

Também no que diz respeito às obras literárias e, em particular, aos livros, o fenómeno da digitalização tem-se integrado tanto na forma de divulgação como na utilização da obra. No entanto, para além de um forte hábito ligado ao formato papel e a que a ainda maioria dos utilizadores está habituado – entre os quais o próprio autor – surgiram ainda dificuldades técnicas várias, quer relacionadas com o próprio hardware e a sua usabilidade e capacidade de

visualização, quer ainda quanto aos formatos de ficheiros eletrónicos (2)  em que os textos são armaze­nados, tratados e utilizados.

Os formatos de ficheiros eletrónicos disponíveis no mercado são vários e podem ser formatos abertos ou proprietários, isto é, basi­camente formatos de a­cesso público ou de acesso restrito. No entanto, re­querem-se pro­gramas capazes de lerem tais formatos e, muitas vezes, como todos já podemos veri­ficar, esses pro­gramas não são de uso livre, mas pagos, daí resultando constran­gi­mentos para os interessados.

Independentemente des­tas particularidades espe­cí­ficas deste setor dos Ebooks, a realidade é que o surgi­mento de dispositivos de leitura, capazes de propor­cionarem uma melhor expe­riência na leitura, muito parecida à leitura de um livro físico, veio, de uma vez por todas, dar relevância a um mercado digital que até aí era quase residual ou insipiente.

Por outro lado, surgiram ainda um conjunto de circunstâncias que vieram contribuir decisivamente para a dinâmica e a cada vez maior afirmação do Ebooks nos hábitos dos utilizadores. Da generalização do uso de smartphones (com écrans maiores e de melhor quali­dade) ao surgimento de outros dispositivos portáteis com uma visualização, inter­face e capacidade de leitura cada vez melhores, às preo­cupações ambientais cres­centes relacionadas com o abate de árvores, e ainda à atual situação de confi­na­mento quase geral em muitos países, todas estas circuns­tâncias vieram, de forma decisiva, dinamizar o inte­resse e procura pelos Ebooks. – Numa época como esta, em que se está encerrado em casa e se tenha curiosidade sobre um determinado assunto, haverá melhor do que ir a uma biblioteca digital como a Amozon e, em poucos mi­nu­tos, se tenha no seu dispo-­


sitivo um determinado Ebook em língua estrangeira para leitura nos próximos tempos?

Hoje, em poucos cliques, isso é possível.

Se bem que não se possa ainda considerar comple­ta­mente ultrapassado o livro físico, o Ebook  apresenta-se, portanto, como uma solução complementar e cada vez mais acessível (em rapidez e em preço) ao comum dos cidadãos.

No que diz respeito ao mercado global de e-books “o crescimento previsto é de 12,4% no faturamento anual do setor em relação a 2019, para 16,6 bilhões de dólares, segundo a consultoria alemã Statista(3).

E ainda poderemos falar sobre o Audiobook, uma outra alternativa ao livro físico e que não é despicienda tendo em conta as mesmas circunstâncias aludidas quanto ao Ebook. No entanto, é inquestionavelmente um formato (áudio) que ainda não entrou nos hábitos de muitos utilizadores, embora já tenha cada vez mais aderentes. As perspetivas são, contudo, muito positivas e o crescimento deste tipo de mercado deverá ser grande. “A expectativa é que 133 milhões de aparelhos (leitores de audiobooks) … sejam vendidos no mundo neste ano, segundo a consultoria IDC(4) .

­Mas esta digitalização não se queda por aqui, também no que diz respeito aos espetáculos de Ópera, existem diversas plataformas digitais – OPERA NORTH(5) , Olyrix(6)  , Operawire(7) , entre muitos outros - que disponibilizam o acesso a inteiros concertos de ópera – para além da maior plataforma disponível on line: Youtube(8)  - e que compro­vam a adaptação em curso dos espetáculos musi­cais em face das novas circunstâncias de distan­cia­mento. Também ao nível museo­lógico e das exposições em museus as coisas estão a mudar e em rápida adap­tação. 





As visitas virtuais aos mais famosos museus a nível mundial são já hoje uma realidade acessível(9) a muitos que, por diversas razões, nunca conseguiriam visitar aqueles locais e aproveitar a riqueza cultural exposta na­queles locais.

Portanto, os meios e instrumentos digitais, já hoje disponíveis, constituem um fator poderosíssimo de difu­são e divulgação da cultura, seja de eventos ou de produtos culturais realizados nos mais diversos pontos do globo. Numa época como a atual, de distanciamento, assu­mem-se, portanto, como fundamentais, por um lado, como elos de manutenção da ligação entre os artistas e empresas do sector cultural e o seu público aficionado e confinado. Mas, por outro lado, também geram ótimas oportunidades para a atração e cativação de um novo público, através da divulgação da cultura junto daqueles que, por diversos motivos, não tinham estado despertos ainda para este tipo de even­tos.

Até aqui, observámos como o fenómeno da digitalização se tem inte­grado, paulatinamente, nas mais diversas áreas da cultura e gerando, em certos casos, novos produtos culturais e novas formas de enrique­cimento cultural.

Naturalmente, que essa in­tegração não se fez de forma uniforme e igual em todos os sectores da cultura, sendo que nalguns casos se tem mostrado com enorme su­cesso e com resultados visíveis e inequívocos, seja ao nível comercial seja de popularidade. Noutros casos, atendendo às particularidades do sector, a integração encontra-se ainda numa fase menos avançada, mas em crescendo evidente. Contudo, acreditamos que se trata de uma realidade inelutável e em consolidação futura.


Tais considerações acima expendidas não põem, de forma alguma, em causa as manifestações e produtos cul­tu­rais até agora existentes, bem pelo contrário. Apenas evidenciam o surgimento de novas manifestações e cria­ções e a complemen­tari­dade, cada vez maior, entre ambas.

E qual o papel da Propriedade Intelectual?

Naqueles sectores cul­turais acima observados e em que a digitalização se en­contra consolidada, nomea­damente na área da música, das obras cinematográficas e dos Ebooks, evidencia-se cla­ra­mente que, subjacente a estas atividades de difusão e comercialização da cultura, se encontram estratégias em­presariais em que um dos pilares essenciais é a Pro­priedade Intelectual. Sem a existência de direitos da propriedade intelectual sobre aquelas obras musicais, cine­matográficas e literárias, difi­cilmente muitas empresas te­riam apostado e investido na criação de plataformas streaming, na produção e realização de séries e filmes próprios, bem como no lançamento de modelos de negócio com o intuito de massificar o acesso e utili­zação destas obras.

Por outro lado, a realidade é que tais modelos de negócio permitiram aos utilizadores terem acesso a um leque enorme de obras e de eventos, que até hoje nunca tinha tido e aos quais, provavelmente, de outra forma, não teriam meios de aceder ou, pelo menos, a custos razoa­velmente acessí­veis.

Com efeito, sobre aquelas obras e eventos, em princípio, há criadores ou entidades que têm direitos de exclusivo, que lhes permitem dar o acesso apenas a quem esteja devi­damente autorizado. O acesso sem autorização é ilícito e suscetível de ser penalizado.

Contudo, o surgimento de



plataformas e bibliotecas digitais veio ultrapassar, em certa medida, uma das grandes dificuldades com que eram confrontados os utilizadores interessados. Isto é, para terem acesso ou ouvirem, por exemplo, uma certa música necessitavam de ter uma autorização do respectivo titular dos direitos – note-se, no entanto, que já antes as sociedade de gestão coletiva de direitos tentavam ultrapassar aquela dificuldade mas, em muitos casos, apenas representavam uma parcela dos titulares envolvidos.

Atualmente, aquelas plata­formas e bibliotecas dis­poni­bilizam um vasto catálo­go de obras a que o utilizador inte­ressado tem acesso medi­ante um pagamento único e cen­tralizado, de forma segura e muito mais simples. Este pa­ga­mento (normalmente, mais reduzido do que se fosse a soma de vários pagamentos individuais) abarca os valores dos serviços prestados por aquelas empresas pro­prie­tárias das plataformas e ainda os valores a pagar aos criadores ou entidades titu­lares daqueles direitos da propriedade intelectual e, deste modo, deixa de haver riscos que podiam surgir naquelas utilizações ilícitas acima descritas.

Por outro lado ainda, naqueles sectores em que a digitalização se encontra numa fase menos madura e em que não há contudo uma adesão completa por parte do público, os direitos da propriedade intelectual res­tam ainda importantes para assegurarem àqueles que se encontram a promover ini­ciativas ou novos modelos de negócio cultural uma ex­clusividade quanto à iden­ti­ficação, conteúdos e perfor­mances culturais realizadas naquele âmbito.

Com efeito, as ideias são livres e podem ser, em princípio, livremente utili­zadas por todos.

No entanto, as concre­tizações em que tais ideias se manifestam podem já ser suscetíveis de serem pro­te­gidas por direitos da pro­priedade intelectual e, caso o sejam, podem ficar reser­vadas aos seus criadores, de acordo com certas regras e condições. O que está sub­jacente nesta “apro­pria­ção” através da propriedade inte­lec­tual é incentivar os cri­adores e compensá-los pelo seu esforço criativo e dinâ­mica. Aquelas obras do domínio literário e artístico, com originalidade e mani­festadas por qualquer meio, podem ser salvaguardadas por direitos autorais. Outro género de elementos cul­turais, nomeadamente quanto ao marketing dos produtos ou serviços culturais, podem ser objeto do registo de marcas ou mesmo de desenhos ou modelos, em termos de propriedade industrial.

A propriedade intelectual, que integra os direitos de autor e a propriedade indus­trial, constitui, se assim se pode afirmar, um dos pilares de uma estratégia cultural dinâmica e auto-sustentável. Tanto no meio físico como digital, a dinamização e pro­du­ção de obras e eventos culturais requer importantes recursos e uma gestão cada vez mais profissional e em que a propriedade intelectual pode ser um elemento importante quando devida­mente empregue. Não basta que as iniciativas culturais tenham sucesso e popula­ridade. É preciso que tenham um retorno e existam bene­fícios para os produtores e intervenientes, que inves­ti­ram os seus meios e disponibilidade. Sem tais benefícios, dificilmente con­se­guir-se-á manter ou melho­rar a atividade cultural, que não pode estar sempre depen­dente eternamente de ajudas estatais. 

Por conseguinte, à semelha­nça do que se faz já em muitos outros países, é inelutável a adoção de uma perspetiva empresarial no exercício da atividade cultural - sem a desvirtuar ou a desprestigiar com certeza -mas em prol da própria dignificação e valorização dos seus intervenientes, que, como todos nós, trabalham e merecem ser recompensados pelo que fazem pela cultura. 

A propriedade intelectual está ao serviço da cultura, saiba esta adotá-la no seu dia-a-dia e aproveitar os seus benefícios!


(1) https://www.statista.com/statistics/250934/quarterly-number-of-netflix-streaming-subscribers-worldwide/

(2) Sobre este assunto, ver detalhadamente Pedro Dias Venâncio in “A Tutela jurídica do formato de ficheiro electrónico”, Almedina.

(3) https://exame.com/revista-exame/vida-nova-ao-livro-digital/

(4) https://exame.com/revista-exame/vida-nova-ao-livro-digital/

(5) https://www.operanorth.co.uk/watch-online/?gclid=EAIaIQobChMIjpi0lK287gIVkYBQBh3ygAJ9EAAYASAAEgKw6_D_BwE

(6) https://www.olyrix.com/air-du-jour

(7) https://www.operaamerica.org/calendar

(8) https://www.youtube.com/

(9) https://www.euronews.com/2020/03/18/virtual-museums-and-music-streams-culture-for-coronavirus-confinement

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