SENEGAL: SOMOS UM!

O Senegal foi uma das maiores surpresas para mim enquanto viajante.

Vitor Briga
1 de Abril de 2020

É um país sem os “postais” turísticos óbvios, mas que está cheio de encantos autênticos e gentes genuínas de que podemos usufruir, principalmente, quando temos a sorte de o conhecer com as pessoas certas.

Percorri o país de carro, durante quinze dias, com um guia que se tornou um amigo: o Souleymane. Este jovem sorridente e muito amigável dizia-se, a brincar, um “muçulmano de esquerda”, pois bebia e fumava sem sentimentos de culpa, enquanto conversávamos e fazíamos piadas, numa mistura de inglês e francês.

Na verdade, quando falávamos mais a sério de religião, dizia que era da “religião da unidade”, mostrando que para ele o mais importante era a conexão com o outro, independentemente das suas crenças. Não é de estranhar que quando lhe perguntei, numa noite de copos, o que era para ele a felicidade, me tenha respondido: “estar feliz, para mim, é estar bem comigo e com os outros.”

A viagem começou na capital Dakar. Estávamos “na estrada” há mais de uma semana e depois de atravessarmos o parque natural de Nikolo Koba, parámos para dormir em Kédougou, uma pequena cidade perto da fronteira com a Guiné-Conacri.

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Durante essa noite, a minha companheira de viagem acordou várias vezes com suores frios, dores e febre. Sabendo que na noite anterior tínhamos dormido num acampamento do parque natural, ficámos tomados pelo medo de que pudesse ter sido picada por algum mosquito e estivéssemos perante um caso de malária. O pior é que estávamos no ponto da viagem mais longe de Dakar, único lugar onde teríamos hospitais preparados para lidar com a situação e a viagem até lá de carro, sem paragens, duraria no mínimo dois dias.

De manhã, quando comunicámos ao Souleymane o sucedido, e os nossos temores, pude observar no seu rosto uma grande preocupação. Imediatamente começou a contactar o centro de saúde local para saber se podíamos lá ir.

E assim foi. Demos por nós a entrar num conjunto de edifícios pré-fabricados, semi- destruídos. Um momento divertido, no meio da preocupação, foi passar  pela maternidade, onde se ouvia o riso das mães e o choro dos bebés,  e onde pudemos observar um recém-nascido a ser lavado e escovado ao ar livre, num balde, por uma enfermeira bem-disposta que se ria das expressões do menino.

Tivemos de esperar algum tempo para que fosse feita uma colheita de sangue. Recordo-me durante essa longa (e ansiosa) espera de um momento em que Souleymane toca durante alguns segundos com a mão na cabeça da minha companheira, como que a querer passar-lhe uma energia curativa que ele no seu imaginário tinha criado.

Depois de várias horas, tivemos a boa notícia de que não se tratava de malária e que seria “apenas” uma bactéria provocada por algum alimento estragado ingerido no dia anterior. Um médico, muito profissional e atencioso, receitou um antibiótico e saímos aliviados.

Antes de entrar no carro, agradecemos do fundo do coração ao Souleymane toda a preocupação e ajuda que nos deu, ao que ele respondeu, de forma simples e sincera: “De nada. Somos um!

Já tinha ouvido a expressão “Somos um!” várias vezes, mas nunca me fez tanto sentido como naquele momento. O Souleymane não estava apenas a dizer algo bonito, estava a afirmar a sua forma de estar na vida e a sua crença profunda de que todos estamos ligados e que quando fazemos bem ao outro, estamos também a fazer bem a nós próprios.

A filosofia Ubuntu diz que “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Este conceito nascido em África crê que "o africano quer o universo como um todo orgânico que tende à harmonia e no qual as partes individuais existem somente como aspetos da unidade universal”.

A tentativa de tradução para português de Ubuntu seria “humanidade para com os outros”. Uma pessoa com Ubuntu tem consciência de que é afetada quando os seus semelhantes são diminuídos e oprimidos. O princípio é “Eu sou porque nós somos”, “Eu existo porque nós existimos”.

Nesta filosofia, as pessoas têm consciência de que não somos ilhas no mundo e que se algo acontece ao seu semelhante, todos serão afetados. Acredita-se que uma pessoa é uma pessoa por meio de todos os seres do universo, incluindo a natureza.

Desmond Tutu, prémio Nobel da Paz em 1984, diz que Ubuntu “é a essência do ser humano. Fala do facto de que minha humanidade está presa e está indissoluvelmente ligada à sua. Eu sou humano, porque eu pertenço. Fala sobre a totalidade, sobre a compaixão. Uma pessoa com Ubuntu é acolhedora, hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar. Esta qualidade dá às pessoas a resiliência, permitindo-lhes sobreviver e emergir humanas, apesar de todos os esforços para desumanizá-las.”

Compare-se esta filosofia com a filosofia ocidental, mais individualista e competitiva, que leva a que nas nossas empresas se perca, muitas vezes, a visão global, em que cada um quer “resolver o seu problema”, esquecendo-se que os seus atos afetam o outro e que quando criamos ao colega uma dificuldade, estamos, na verdade, a criar um problema para todos, pois somos interdependentes e fazemos parte de um todo maior.

Sim, Souleymane, somos um!

Artigo em formato PDF

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