Índia: O medo de perder

A Índia foi uma das viagens mais significativas da minha vida.

Vitor Briga
31 de Dezembro de 2019

Ainda é difícil para mim sintetizar em palavras todo o impacto que a energia incrível deste país teve nos meus sentidos.

Na verdade, a viagem não começou muito bem. Cheguei a Nova Deli ao final da tarde, depois de uma longa viagem e cansado. Deixei as bagagens no hotel e saí para procurar um lugar para jantar. Estava alojado junto a uma das praças mais antigas, onde havia um mercado com lojas e arcadas a toda a volta e onde somos invadidos pela imprevisibilidade e barulhos do trânsito, pelas vozes das pessoas que serpenteiam as ruas com a pressa do fim do dia, pelos cheiros, nem sempre agradáveis, da própria cidade e dos muitos sem-abrigo que dormiam ou descansavam debaixo destas arcadas. Apesar de gostar deste turbilhão sensorial, como estava muito cansado, decidi afastar-me desta zona e procurar um lugar mais calmo.

No fim do jantar, quando voltava para o hotel, já de noite, dei por mim numa estrada sem iluminação, que teria mesmo de atravessar para chegar à praça principal. Foi nesta estrada isolada e escura que fui abordado por um grupo de crianças e adolescentes que começaram por me pedir dinheiro, mas que rapidamente começaram a ter uma abordagem mais hostil tentando cercar-me e tirar o que conseguissem dos meus bolsos. Estavam reunidas todas as condições para se instalar em mim uma emoção de medo: o cansaço, que nos tira a clareza de raciocínio, estar num país muito diferente, a escuridão cerrada, a invasão do meu espaço pessoal ao sentir várias mãos a tocar-me e, para piorar, saber que tinha comigo, além do dinheiro para a viagem, o passaporte, aquilo que nunca se deve perder nestas situações... Com o coração acelerado, dei por mim a correr para alcançar o primeiro ponto de luz que via ao fundo.

Verifiquei que a única coisa que me tiraram foi o mapa da cidade, que estava no bolso de trás das calças, mas este episódio deixou-me a pensar sobre as razões desta sensação de medo. O meu erro foi ter saído com algo que podia perder. Se apenas tivesse comigo o dinheiro para o jantar e tivesse deixado tudo o resto no cofre do hotel, a história desta noite teria sido muito diferente. Aqueles jovens não me queriam atacar fisicamente, "só" queriam algo. Se eu não tivesse nada comigo, provavelmente estaria mais relaxado, pois não tinha nada a perder. A partir desse acontecimento, em todas as viagens em que saio sozinho, ou para lugares desconhecidos, tento levar-me só a mim, e não os pertences, para que possa usufruir da experiência sem medos.

Tenho verificado que à medida que vamos ficando mais velhos, tendemos a tomar as nossas  decisões (ou a não tomar) mais tendo em conta aquilo que podemos perder do que aquilo que podemos ganhar.  O foco apenas no que temos a perder é um dos grandes obstáculos a uma tomada de decisão esclarecida, e pior do que tudo, pode paralisar a ação, bloqueando a nossa realização pessoal e profissional.   

Aldous Huxley escreveu que "o medo não só expulsa o amor; mas também a inteligência, a bondade, e todo o pensamento de beleza e verdade, e fica apenas o mudo desespero; e no final, o medo chega a expulsar do homem a própria humanidade". Verifico muitas vezes, nas empresas onde dou formação, que os comportamentos mais agressivos nas equipas têm na sua base os medos pessoais dos seus elementos.

O medo de não ser aceite, o medo de não ser amado, o medo de não ser suficiente, o medo de perder o emprego, o medo de ser roubado, o medo de não ser respeitado, o medo de envelhecer, o medo de não ser igual, o medo do que é diferente, o medo, o medo....

É óbvio que precisamos do medo, pois é esta emoção que nos dá a prudência necessária para não cometermos alguns erros graves ou fazermos coisas impensadas que podem ter consequências dramáticas. No entanto, como sugere a autora Pilar Jericó no seu livro "Medo Zero", temos de distinguir entre o medo equilibrado (que é positivo para os nossos interesses, protege-nos contra o perigo e tem uma duração pontual) do medo tóxico (que é destrutivo para os nossos interesses, não contribui para a nossa evolução, esvazia o nosso talento e se prolonga no tempo). Para o tornar equilibrado, é importante ter presente que se o medo nasce da ameaça de perdermos aquilo que temos, a dita ameaça depende da segurança e da confiança que temos em nós mesmos.

No meu livro "De Clone a Clown - a arte de ter (e vender) ideias criativas" refiro que no nosso dia-a-dia podemos optar por hábitos que mobilizem o nosso modo de agir "clone" ou por hábitos que mobilizem o nosso modo de agir "clown". Ao fazer este jogo de palavras, entendo por "modo clone" o nosso lado fechado. Aquele que está conformado e que, quando confrontado com um desafio, tende a optar pelas soluções mais tradicionais e seguras. É o lado que prefere seguir os padrões convencionais que fazem parte do "guião" e que evita a espontaneidade pessoal, com medo do ridículo e de falhar. E por "modo clown", o nosso lado aberto de estar nas coisas, que arrisca, que tem uma curiosidade sem limites, um otimismo e prazer entusiasmantes na ação. Aquele que brinca, que tem coragem de seguir os seus próprios pensamentos e intuições, mesmo quando são distintos dos da maioria, e de os partilhar mobilizando positivamente as emoções dos outros. Ou seja, o nosso "modo clown" opera numa lógica de domínio e vai para o desconhecido a pensar no que é que pode ganhar, enquanto que o nosso "modo clone" opera numa lógica de medo, pois vai para o desconhecido a pensar no que é que pode perder.

Voltando a Nova Deli, na manhã seguinte, acordei cedo para iniciar um périplo que me iria levar ao Rajastão, Agra, Varanasi e Goa. Estava uma manhã chuvosa, mas bonita. Ia num táxi e vi pela janela, perto do local onde tinha estado na noite anterior, um grupo de crianças a dançar à chuva. Estavam luminosos e felizes no seu "modo clown", com uma alegria que raramente senti ou vi nas nossas cidades. Depois do medo da noite anterior, senti falta de também eu me conectar com esse meu lado.

Por acaso, levava comigo um nariz vermelho e, a partir desse dia, em todos os locais por onde passei promovi brincadeiras, com o nariz vermelho posto, interagindo com as pessoas com quem me ia cruzando. Por exemplo, nas estações de comboio, colocava de repente o nariz e via as pessoas a aproximarem-se e a rirem comigo. Foi particularmente surpreendente ver as crianças pedintes que, quando viam a minha transformação com a mais pequena máscara do teatro, rapidamente passavam de uma cara triste para uma cara de surpresa e risonha. Tirei fotografias em "modo clown” com os locais em diversos lugares públicos, praças e monumentos e, de repente, dei por mim conectado com amor e humanidade. Na primeira noite estava-me a faltar  essa liberdade.  

A partir daqui tive uma das viagens mais maravilhosas da minha vida, porque a energia que estava a dar voltava para mim em dobro, porque se medo atraí medo, bondade e alegria tendem a atrair o melhor dos outros.

Em qual dos modos, "clone" ou "clown", está a viajar na sua vida? O seu medo é equilibrado ou tóxico? E na sua empresa, é o medo que lidera? O que pode fazer para não se deixar contagiar? Importa lembrar que podemos parar uma espiral de medo a qualquer momento, começando por aceitar que muitos dos medos são mais produto do pensamento, e da insegurança pessoal, do que da realidade.

Uma última pergunta: O que faria agora, se não tivesse medo? 

Artigo em formato PDF

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