Os Rebeldes Corporativos

Reza a lenda que em 1985 Muhammad Ali estava em na Universidade de Harvard numa tertúlia com um conjunto de estudantes e de repente além gritou: “Diz aí um poema, Muhammad’.

Hugo Gonçalves
31 de Dezembro de 2019

Ele ficou algum tempo a olhar para o horizonte e saiu-se com esta: ‘Me. We’. É considerado o poema mais curto da língua inglesa. Mas existe um outro candidato ao poema mais curto. Não consegui identificar o autor e segue assim: ‘I!Why?’

Ambos os poemas parecem-me poderosos e até considero que, do que poesia, são manifestos.

Levando isto para a parte profissional e das organizações, questões como forças e limitações, valores e objetivos, qual a performance com motivação e sob stress, individual e em equipa estão presentes de forma regular como de uma viagem de autodescoberta se tratasse. 

Considero que hoje é mais fácil responder à questão “Quem Sou Eu” do que a “Quem Somos Nós”, no âmbito organizacional. Hoje em dia temos acesso / consciência da inteligência emocional, assessments 360ª, two-way appraisals. Temos o mindfulness e o feedback em sandwich. Em parte, vivemos na Era do Eu.

Mas quantas vezes é que refletimos sobre “Quem Somos Nós”, numa equipa, numa organização, numa holding? Quantas vezes é que realmente focamos o “Nós”? Quem é o meu grupo, quem é a minha tribo, quem é a minha organização? E o que nos define, como nos relacionamos, como interagimos? Como vamos criar impacto? E qual o legado que queremos construir, mais do que deixar para os que vêm a seguir?

Em resumo, acho que neste momento estamos num ponto crucial de singularidade e interseção entre o individual e o coletivo. O propósito e respetiva desmultiplicação para produtos, serviços e features de uma organização e dos seus colaboradores serão determinados pela sua capacidade de reconhecer as aspirações, necessidades e equilíbrios desejados por clientes, utilizadores e beneficiários.

Além disso, já existem evidências mais do que suficientes de que as organizações que trabalham para criar ecossistemas de trabalho inspiradores e equilibrados colocam-se automaticamente numa posição de florescer e de evoluir. Isso implicou para quase todas elas desapegar das formas normais de trabalhar e “arejar” a mente relativamente ao que é ou não “correto” ou expetável a nível de command-and-control.


Pesquisando um pouco sobre as visões e ideias de várias pessoas sobre esta temática e até mesmo relendo alguns dos meus artigos anteriores, acabei por “colar” uma macroestrutura que poderá resumir como podemos saudavelmente implementar uma revolução corporativa equilibrada e consistente.

Isto implica sermos Rebeldes Corporativos (considero-me um) e abraçar estes possíveis caminhos que aqui sugiro:


Do lucro para o propósito e valores

Em primeiro lugar, definir e trabalhar segundo um propósito ou significado proporciona energia, motivação, paixão e alinhamento. Uma construção colaborativa da Missão permite ultrapassar silos, burocracia e egos e facilita a transformação do potencial das pessoas em performance. Depois, com o propósito chegam também os valores, os comportamentos e as competências técnicas, relacionais e emocionais necessárias. Muitas vezes substituir protocolos e procedimentos por um conjunto claro de valores e comportamentos faz maravilhas pela organização.

Da hierarquia para o ecossistema 

O trabalho tem hoje em dia uma matriz celular diferente. As empresas são cada vez mais clusters e projetos do que propriamente estruturas hierárquicas. Workflows e responsabilidades deverão ter um formato fluído. Então, faz todo o sentido que múltiplas equipas possam interagir em múltiplos contextos e desafios. É a melhor formação interna que uma empresa pode proporcionar. Pois irá estar a desenvolver consultores colaborativos internos. Que irão estar a trabalhar de forma a atingirem algo aparentemente paradoxal – resultados business e alinhamento com os valores human centric.

Da autoridade para o suporte

Certamente que faz cada vez mais sentido “empurrar” decisões pela cadeia de comando abaixo. Pelo facto de uma cadeia de comando vertical ser neste momento o maior obstáculo à transformação e evolução das empresas. Esta abordagem negligencia a sabedoria da tribo organizacional e desconecta quem está mais próximo do terreno e dos clientes. Sem dúvida, os líderes e gestores mais alinhados com a abordagem do suporte funcionam mais como exploradores externos e “vendedores” internos da mudança e da evolução. A autoridade no contexto profissional não advém da hierarquia mas do respeito, empatia e equanimidade. De facto, estes líderes e gestores aceitam que não sabem tudo sobre tudo e vêm os seus colaboradores como conselheiros, não só como executantes.

Da previsão para a mudança

Sem dúvida que planos estratégicos de 2/3/4 anos e budgets análogos cada vez mais são expostos e desmontados pelo VUCA. Já não são formas de prever o futuro. As melhores opções para lidar com o futuro são criá-lo, identifica-lo enquanto ainda está longe e aceitá-lo e adaptarmo-nos da melhor forma. Assim sendo a experimentação, a prototipagem, os testes, os projetos-piloto, as iterações são a melhor prática. Experimentar, aprender, adaptar. Sem medo de falhar, porque iremos estar a ter medo de aprender. Tudo isto deve ficar visível, deve ser recompensado, deve ser desmultiplicado como uma parte da cultura.

Das regras para a confiança

A autonomia, a delegação e preparação das pessoas para as assumirem são um dos “segredos” menos bem escondidos para o desenvolvimento organizacional. Mas como todos os segredos mal escondidos, existe algo muito bem escondido que quase sempre impede que isto seja realizado da melhor forma. Um maior grau de liberdade não é uma estrada de um sentido só. Deve também ser acompanhada de um maior grau de responsabilidade e accountability. Em muitos casos, áreas de negócio e organizações, já é mesmo possível permitir que as pessoas decidam elas próprias como fazer, onde o fazer e quando. Chama-se Holocracia.

Do segredo para a transparência 

Quando existem muitos “segredos” numa organização, a tendência natural das pessoas é, na falta de transparência e informação concreta, especular. E não o fazem por mal, apenas usam a lógica ou imaginação delas para poderem ter algo o mais semelhante possível a uma resposta ou contextualização. E se cada um de nós for criando de forma regular estas fake news individualmente, então a cultura coletiva será trucidada. Muitas organizações já aplicam a abordagem de “abertura por defeito” e “é possível perguntar tudo”. Outras formas de transparência são a partilha de informação, dados, lições aprendidas, boas práticas e benchmarking. A informação certa, na altura certa permite a tomada de melhores decisões e a rápida implementação de ações.

Das funções para o talento

Cada pessoa na sua organização é um cosmos de competências e inteligências múltiplas. Saber identificá-las e fazer o melhor uso e distribuição das mesmas é a melhor forma de manter as equipas preparadas, motivadas, curiosas e ansiosas por novos desafios. Quase que arrisco a dizer que 80% dos descritivos de funções que existem atualmente nas organizações já estão desatualizados relativamente às reais necessidades da mesma, dos seus clientes e da sua área de negócio. Vamos permitir que as pessoas, dentro do possível, possam trabalhar em algo que seja o melhor fit entre os seus interesses, talentos e forças.

Integração plena

Acima de tudo, concretizar de forma mais profunda e equilibrada o Capital Humano terá que ser a nossa prioridade como Pessoas e Profissionais. A era moderna dos negócios necessita de ser inspirada por uma abordagem abrangente, integrada e despertadora da curiosidade através de uma abordagem mais holística, humilde e apaixonada por partes dos líderes e gestores.

Por outras palavras:

‘Me. We.’

Artigo em formato PDF

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